terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Navegar é preciso

Estou tendo um momento Fernando Pessoa. Calmaaaaa queridos blogueiros, amigos virtuais e outros: isso não é uma crise de identidade.

A Rê (@renataortega) disse esses dias que eu tenho cara de quem gosta do Fernando Pessoa, e acertou em cheio amiga... eu gosto mesmo. Dele... e de todas as suas personalidades, papéis e representações literárias, verdadeiros heterônimos. Ele foi um dos mais importantes poetas da língua portuguesa, grande escritor e ... bem... não há palavras para descrevê-lo, somente sua obra é capaz de falar por ele.

"Navegar é preciso, viver não. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: viver não é necessário, o que é necessário é criar"

A frase a que FP se refere e que tantos propagam por aí na verdade é de Pompeu, general romano, dita aos marinheiros que, amedontrados, se recusavam a viajar em navios de guerra. Não há navios de guerra em minha vida, mas quantas vezes nos sentimos amedontrados, horrorizados e até de mãos atadas diante de algo que precisamos ou queremos? Assim, concordo com FP... o espírito desta frase permanece em nossas vidas, porque viver não é necessário... mas inventar a vida é.

Inventar aliás... grande habilidade de FP. Seus heterônimos falam por si só... falam conosco de diferentes formas, mas nos tocam como só FP consegue nos tocar. São tangíveis, e na verdade, não o são (afinal, eles não são alguém)... são partes, fragmentos da alma do grande poeta.

"Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não."




"Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo" - Alberto Caeiro

"Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na Cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença"
- Ricardo Reis

"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
" - Álvaro de Campos (meu heterônimo favorito)...


À parte de todo o resto, tenho em mim toda a inspiração do mundo... metade de mim é sonho, metade de mim é pranto. Mas a alma, nunca é metade, nunca está sozinha. A alma, que enobrece o homem... a alma, que me faz chorar. A alma... alma minha, é desejo, é lucidez. A alma, à parte de todo o resto, é loucura... 

Isso não é crise de identidade... é loucura pura (sempre fui loucura...) pois, na essência da vida, navegar é preciso.


"Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir."
Fernando Pessoa

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